Trecho de livro

Dança de Enganos

Com novo romance, Milton Hatoum encerra a trilogia “O Lugar mais Sombrio”, iniciada com “A Noite da Espera” (2017) e “Pontos de Fuga” (2019)

Tereza Novaes 24 de Outubro de 2025

“Toda mãe se desorbita.” A frase de Guimarães Rosa é uma das epígrafes de “Dança de Enganos”, novo livro de Milton Hatoum, e prenuncia o deslocamento narrativo da trama, que encerra a trilogia sobre o jovem Martim. Agora, é Lina, a mãe dele, quem assume a voz e o centro da história, revelando segredos e abrindo novas perspectivas sobre os acontecimentos que marcaram a vida do filho.

A trilogia, que começou a ser escrita quase duas décadas atrás, acompanha a formação sentimental, cultural e política do protagonista durante a ditadura militar brasileira. Nos dois primeiros livros, a mãe dele, após se separar do pai severo, vai dando cada vez menos notícias, tornando-se uma figura misteriosa.

Sobre Lina, Hatoum disse, em entrevista à Folha, que ela é “uma mulher convencional”. “Eu tentei trabalhar com a lenta conscientização do corpo, da liberação das imposições patriarcais.”

No volume anterior, “Pontos de Fuga”, Martim deixa Brasília e retorna a São Paulo, onde ingressa na faculdade de arquitetura e passa a morar numa república de estudantes. Na cidade, ele reconstrói sua relação afetiva com pessoas e lugares, como a rua onde cresceu que agora é endereço do DOI-Codi.

Nascido em Manaus em 1952, Milton Hatoum é um dos mais importantes escritores brasileiros contemporâneos. De ascendência libanesa, formou-se em arquitetura pela Universidade de São Paulo e lecionou literatura na Universidade Federal do Amazonas e na Universidade da Califórnia, em Berkeley.

É autor de “Cinzas do Norte” (2005), “Órfãos do Eldorado” (2008) e da coletânea de contos “A Cidade Ilhada” (2009). Sua obra já foi traduzida para mais de dez idiomas e publicada em mais de 20 países. Recém-eleito para a cadeira de número seis da Academia Brasileira de Letras e sempre cotado nas prévias para o Nobel de Literatura, Hatoum revisita em “Dança de Enganos” temas centrais de sua literatura, como as relações familiares, as perdas e as cicatrizes deixadas pela história do país.


1.

Numa carta, Martim perguntou: Você se apaixonou mesmo por esse artista? Quando tudo isso começou? Como? É possível explicar ou entender certos sentimentos? Meu filho cursava o colegial em Brasília quando fez essas perguntas. Nas lições de francês no Paraíso, ele teimava em traduzir tomber amoureux por “cair apaixonado”. Não estava totalmente errado: às vezes uma pessoa cai por excesso de amor e não se ergue do tombo.

Numa quinta-feira de maio, passei na quitinete da São Luís para pegar fotos do Dácio e vendê-las às minhas alunas da capital. Ele disse: “Meu amigo não costuma passar por aqui de manhã. Parece que vocês combinaram.” Era Leonardo. A gente não se via desde a festa de formatura dos engenheiros. O cabelo levemente acinzentado o envelhecia mais que o rosto, que não mudara tanto. Ele se aproximou de mim, um pouco hesitante, e me encarou com o olhar daquela noite, como se o passado ainda estivesse vivo.

Uma só lágrima seria um triunfo para ele, que perdeu o controle e a vigilância sobre mim quando comecei a trabalhar

Dácio quis sair da quitinete, mas eu inventei um compromisso e fui embora sem pegar as fotos. Nos dois encontros com Leo, num intervalo de quinze ou dezesseis anos, nenhum escutara a voz do outro. Eu mal falava com o meu marido e, na intimidade, sufocava meu choro. Uma só lágrima seria um triunfo para ele, que perdeu o controle e a vigilância sobre mim quando comecei a trabalhar, graças a Antonio Verona, professor de história no Salesiano, e o único com quem eu conversava.

Depois de uma reunião com os pais de alunos, ele me disse que Martim sempre ficava sozinho durante o recreio e se afastava da turma nos “passeios históricos” ao centro de São Paulo. Quando os valentões da sala chamavam meu filho de “múmia caiçara” e “Martim dos tamancos”, ele os enfrentava, apanhava, entrava em casa com a roupa rasgada, queria me cumprimentar com os lábios inchados e cortados, e se chateava quando eu evitava o rosto dele. Não era o sangue… E quando era castigado pelo pai, o riso de escárnio na boca machucada enfurecia ainda mais o homem.

Disse a Verona que estranhava a atitude do Martim, mencionei problemas no meu casamento e a necessidade de trabalhar. Ele sugeriu que eu lecionasse francês, fez contatos com mães de alunos e, quando elas se interessaram pelas aulas particulares, decidi enfrentar a pressão de um homem que me queria engaiolada na servidão do lar. Não queria mais dormir com ele, sentia asco de uma pessoa que me humilhava. “A professorinha da Vila Mariana, do Jabaquara e da Bela Vista”, ele dizia quando eu chegava atrasada em casa, depois de perguntar o motivo da demora. Lembro que, a partir de abril de 1964, adquiriu a mania de dizer nas igrejas e padarias do bairro que “a revolução dos militares” ia “libertar o Brasil do comunismo”.

Há sempre algo adormecido em algum desvão obscuro da nossa mente. Não reconhecia o homem que se casara comigo, nem o pai dos primeiros anos da infância de Martim. Num feriado de Quinze de Novembro, o último na praia dos Pescadores, ele repetia com uma euforia louca aquela frase. Lembro que me afastei dele e do meu filho e corri para o mar. Não foi um acidente. Não queria mais voltar… Martim percebeu meu desespero; senti a presença dele antes de ouvir a voz; senti — como tantas mães sentem ou intuem — a angústia do filho, o pavor de perder a mãe. Enquanto me distanciava da margem, ele dava braçadas e mergulhava na minha direção, até me enlaçar e me levar à beira da praia. Vi no rosto de catorze anos os olhos escuros e aflitos. Agora, tanto tempo depois, só posso imaginar aquele rosto e o olhar, que parecem as formas de um segredo.

Quando Rodolfo se ajoelhou na areia e se curvou sobre meu corpo, expeli o resto de água salgada. A inimizade por ele era mais forte que o desamor, e eu já estava novamente apaixonada, dessa vez por Leonardo.

Menos de um mês depois do nosso reencontro na quitinete da São Luís, Leonardo me ligou no meio de uma manhã: ouvi uma confissão de amor, que não foi longa nem derramada; depois perguntou se eu queria viver com ele em Campinas e me pediu que pensasse nisso.

Não teria força moral para suportar uma separação, mas estava enganada quanto a mim mesma. A recusa em rever Leonardo durou alguns dias: o tempo de negar a vida. Pensei no incidente na praia dos Pescadores e decidi viver uma verdadeira história de amor. E não foi a única.

A vida com meu marido era um vazio, mas cheio de humilhações. Ele festejou o nascimento do Martim e tomou para si uma parte da infância do nosso filho. Nos fins de semana, ele o levava à missa, depois a uma quermesse ou a um parque, e voltavam de noitinha. Com esses gestos de amor paterno, eu podia ouvir música, ir ao cinema, ler. Mas eram de fato gestos amorosos? Quando meu filho me pedia para ir junto, o pai proibia. Martim me dizia que ele só falava de religião e o obrigava a rezar; ele temia que o filho, quando crescesse, fosse como meu irmão. Lembro a pergunta do Martim, com as palavras do pai: “Por que tio Dácio é um homem estragado?”.

Foi quando decidi ir com eles às quermesses do bairro; me entediava com os bingos, prendas, com a carolice de mulheres que lembrava a da minha mãe; pedia a Martim que inventasse uma dor de cabeça ou de dente, a gente se livrava daquele homem, sem saber como ele reagiria depois. Era imprevisível: às vezes ficava arredio, carrancudo ou taciturno; quando indagava sobre a dor do filho, eu pegava na bolsa uma cartela de analgésicos, que eu mesma usava. Quando nós três íamos ao centro, Martim parava na Casa Godinho e pedia um mil-folhas; o pai olhava para a criança com água na boca e então dizia: “É um doce delicioso, mas não para hoje.”

Essa avareza me parecia incompreensível, porque ele gostava muito do Martim. Mesmo antes de começar a trabalhar, eu não pedia um tostão a Rodolfo; às vezes Mariano me dava uma mesada magra, mas essa generosidade não ficava barata. Um dia, Ondina disse na minha presença: “O dinheiro dessa mesada sacrifica nossa vida no chalé.” Anos depois, Delinha revelou que o verdadeiro sacrifício recaía nela, que recebia com atraso o salário. Ouvi isso da própria Delinha e transferi minha culpa ao Rodolfo. A avareza dele não o fazia feliz, mas muita gente suporta a infelicidade para tramar um futuro próspero.

Mas a maturidade depende só da idade? A rígida educação moral e religiosa da minha geração era um entrave para o rompimento de um matrimônio

A decisão de viver com Leonardo foi quase tão difícil quanto me separar do meu filho. Quando falei disso numa carta, Martim ignorou minhas palavras e meu sentimento; e como não pude acompanhar a passagem dele à vida adulta, atribuí sua hostilidade a Leonardo à imaturidade de um adolescente. Mas a maturidade depende só da idade? A rígida educação moral e religiosa da minha geração era um entrave para o rompimento de um matrimônio. Lia romances com uma excitação fantasiosa, que me distanciava das noites com Rodolfo; vivia com Martim outras fugas imaginárias quando folheávamos o “Guide pratique de Paris”, a cidade que desejávamos visitar sem Rodolfo, dono de outros sonhos.

No primeiro telefonema, Leo me disse que depois da festa dos engenheiros me enviara duas cartas que, sem dúvida, minha mãe havia lido e jogado fora. Pensei, com raiva e temor, que ela seria capaz de cometer atos até mais vis. No dia da nossa despedida, Martim não quis conversar com Leonardo durante o almoço no Flor de Lotus, e até foi estúpido com ele; depois, a caminho do Paraíso, me chamou de mãe postiça, com coração seco. Eu não sabia de muitas coisas, e Martim, menos ainda. Rodolfo exigiu que o nosso filho fosse morar com ele em Brasília e, para minha surpresa e decepção, Dácio, de início, concordou. Relutei como pude, me vi sozinha diante da exigência do Rodolfo e do argumento do Dácio: dinheiro. Mas não acreditei totalmente nisso: pensava em coisas absurdas, que me pareciam vagas, confusas, e que só fizeram sentido anos depois…

Produto

  • Dança de Enganos
  • Milton Hatoum
  • Companhia das letras
  • 256 páginas

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